[FRANCA MENTE] A DONA DO VERBO
Por: Francine Camargo - 20:10
Era uma vez uma garotinha que não se fazia
entender por palavras. Isso mesmo. Emitia o som em porte adequado, desfrutava
de acertado vocabulário, pronunciava-se em relação a qualquer assunto, falava
mesmo pelos cotovelos e discutia, muitas vezes, com a própria imagem ao
espelho. Mas, curiosamente e ninguém sabia explicar o porquê, não se podia
compreender o que ela dizia, por maior que fosse o seu entusiasmo ou a
disposição e empenho do interlocutor.
Apesar desse detalhe quase irrelevante da
falta de comunicação, ela continuava senhora de si e expressava-se da maneira
como conseguia. Experimentava verdadeira paixão pelos vocábulos, enxergava
letras no ar e tentava apanhá-las, em fantasia, para formar seu nome. É fato
que preferia o A e o M, tinha certo medo do Z e do H e ria-se toda quando o I
ensaiava sair de sua boca.
Complicado era decifrá-la quando seus
olhinhos aflitos algo solicitavam, quando esperava por uma resposta. Chorava um
pouquinho, mas em seguida, novamente um turbilhão de frases saía de si, para
talvez um dia fazer sentido.
Muitas vezes, solicitou à mãe que
comprasse a ela uma nova voz ou algum chá de entendimento no mercado, na loja
da esquina, no centro da cidade, na loja online da China. Não era possível, em
algum lugar deveria haver a sua solução em troca de algumas moedas! Mas sua mãe
não achava em parte alguma.
Até que em um dia, a menininha se
enfastiou e resolveu parar de falar, se é que de fala podemos chamar a sua
constante tentativa frustrada de conversação. Cerrou os lábios, cruzou os
braços e negou-se a ser a pseudo-tagarela de antes. Todos, obviamente,
estranharam esse comportamento de resistência e aprisionamento de si mesma.
Porque, ao não se importar mais em se fazer ouvir, ninguém mais sabia como
acessá-la.
Os dias se tornaram mais silenciosos,
solitários e menos inesperados. Perdeu-se o decifrar e até o humor encoberto
que pairava ao redor daquelas palavras ininteligíveis. E eis que o mundo que a
cercava calou-se junto com a garota.
Silêncio. Silêncio. Silêncio. Não, assim,
já era demais! Tudo bem ela não falar, mas ninguém mais??? Não, isso não estava
certo. Foi o que ela pensou ao olhar para cima, para os lados, para frente e
para trás e enxergar todos tão aborrecidos, lastimando a transformação da
criança, de barulhenta para taciturna.
– Ei, vocês! Parem com isso! Ninguém mais
vai conversar comigo?
Silêncio. Silêncio. Silêncio.
– Ora bolas! Como se fizesse algum sentido
o que estou dizendo!
Os rostos e expressões de todos próximos a
ela denunciavam: o que fluía dela tinha sentido sim. Naquela hora, a menininha
sem palavras dava lugar à chefe interina das orações e não havia pessoa no
mundo que não distinguisse cada letrinha de suas sentenças.
E eis que, desse dia em diante, qualquer
um, vindo inclusive de terras distantes, vinha curvar-se diante dela e ouvir o
que a voz mágica da pequena dona do verbo tinha a manifestar.
(Feliz dia das crianças a esses seres de luz própria, que encantam tanto com palavras quanto com seu silêncio, e que, ao mesmo tempo que nascem, também nos reavivam e despertam uma nova maneira de escutar, um olhar particular para cada ato, um novo apetite pelo amanhecer.)
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