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[FRANCA MENTE] EU EM MIM

Por Francine S. C. Camargo •
domingo, 19 de abril de 2020

– Ei, chegue mais perto.

 Era minha voz que soava imperativa, mas longínqua, em alguma minúcia do quarto que eu ainda não percebia. Oh, não, será que ousei partir e esqueci de me findar? Eu que vazia me joguei nessa cama há dias, horas, ou talvez há uma eternidade de alguns minutos?


 O corpo maciço levanta-se vagaroso, atrapalhado com o roupão e o cabelo encharcado de suor misturado com água de banho, quando há pouco lavei-me das incertezas, em uma tentativa de reabilitar minha cabeça cheia de entulhos.

– Você sabe onde estou.

 Sim, sei agora. É o espelho que me suplica.

 Frente a frente comigo e o que me noto é uma pele desbotada, vítrea. Por muito pouco, a luz passa por mim e, por enquanto, só retenho sombras. Por ora, eu me apodero de sobras.

– Por que é tão difícil se erguer?

 Ora, é difícil porque dei muita importância e atenção para tudo, muito mais do que mereciam.

– E você, o que merece?

 Eu mereço...o que eu mereço? Nossa, tantas coisas. Olho para minha imagem e constato: tanto. Mas entre porções de bens sólidos, só há um estado a que eu realmente tenho direito: paz. Paz, pois com ela poderei conquistar qualquer realidade, poderei dar passos sem fim ao encontro dos meus sonhos.

 Havia um sorriso de satisfação na representação de mim ao espelho, mas esse foi fugaz. Deu rapidamente lugar a um novo eco:

– E o que almeja conquistar? Qual é o seu sonho?

 Sinto as mãos tombadas e reduzidas ao quadril, como se estivessem inclementes à cena, repousando enquanto não forem convocadas. Pois eu as estendo, em desobediência.

 Sou uma sonhadora, com os pés fincados no chão!

– Por que tem as mãos estendidas? O que tenciona pegar?

 Como a espera da lua cheia a acontecer no céu, tenho também em mim bem gritante a réplica para essa e todas as demais perguntas que me surgirem a partir de agora até logo mais:

– Minhas mãos estão estendidas para ajudar alguém. Não sei se a mim mesma ou ao peregrino que julgue indispensável passar por mim.

 E assim planejo colher sorrisos, meus e de quem quiser ser amparado; a intenção é conhecer quem eu já conhecia e quem eu jamais pude interpretar, transformar a mim e a esse por meio das canções...dos livros...das minhas mãos.

 De repente a cena ao espelho soa comum, soa exatamente eu, sem mais invocação, embora eu ainda sinta a pele arder um pouco de frio e temor. Já não preciso mais do reflexo.

Você sabe quem eu sou (clama a voz agora dentro de mim).

 Sim, sei-o agora.

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