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AOS NOSSOS CRIMES INEXPLICÁVEIS

Por Francine S. C. Camargo •
segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Algumas vezes é um tijolo que a vida lança na nossa cabeça. Outras vezes, a vida passa longe dessas transgressões e, no entanto, quem nos acena é a morte, com toda sua criminalidade.

– Tia, você vai ficar comigo?

Enquanto atendia em ritmo aventureiro na segunda-feira à noite de um pronto atendimento em pediatria, fui chamada para avaliar uma criança na sala de emergência, mais conhecida como sala de medicação, já que era raro algo de muita gravidade chegar ao nosso plantão.

Na maca, um menino de 5 anos de cílios gigantes, grau importante de irritabilidade, com palidez e gemência era o motivo de eu estar ali, numa apresentação típica de um quadro de choque séptico. A mãe, com o desespero
de ver que algo estava muito errado e alquebrada pelo sofrimento do filho, sofrimento que havia se iniciado pouquíssimo tempo antes da vinda ao serviço de saúde, contou que ele havia tido catapora havia uma semana e o motivo da procura era pelo aparecimento de novas manchas na pele. Quando indagada sobre a irritação e o nível de consciência, respondeu que ele estava estranho e “não estava assim antes”. Apesar da falta de costume da equipe e um preparo deficiente para situações de urgência, com muito incentivo, pouco material e alguma cobrança, em cerca de 30 minutos todas as medidas de estabilização que nos eram cabíveis foram tomadas e ele estava pronto para subir para a UTI pediátrica, local em que eu também era plantonista em outro dia da semana.

Já no elevador, enquanto eu tentava distrai-lo com frases de carinho que mostrassem que  não estava sozinho, ele não soltou minha mão e permaneceu o tempo todo olhando fundo nos meus olhos, com aqueles cílios transbordando em seu rosto e um sorriso entendido, como quem abrisse a alma para também me fazer companhia.

– Tia, você vai segurar a minha mão?

Enquanto me sorria e nossas mãos estavam unidas, a natureza dava as suas para a doença fatal e caminhavam fortemente juntas, rarefazendo minhas expectativas. Pouco depois da chegada à UTI, aquele sorriso já não se abriu.

Nas duas horas que se sucederam de reanimação, eu fiquei dividida entre estar com ele e ajudar no que pudesse, explicar aos pais o que estava acontecendo e tentar acolhê-los ao máximo e ainda dar continuidade ao meu trabalho, ao me deparar com um pronto socorro lotado e com outras dores a minimizar. Ou seja, eu fiquei perdida.

Era um devaneio achar que eu daria conta se começasse a pensar. Então, não pensei, só segui.
E cada vez ficava mais distante. E cada vez ficará mais.

Ele não resistiu, assim como não reagiu a pequena garota de voz doce e cabelos dourados que também chegou em outro local conversando e em poucas horas se despedia, apesar de nosso esforço inabalável. Assim como a bebê de 1 ano e tantos outros que cruzam o nosso caminho, sem doenças prévias e que, num momento crispam toda a sua energia e resolvem ocultar-se de nosso convívio.

Tantas moléstias são capazes de causar esse estrago. Essa, em questão, deu seu nome, poucas horas depois: meningococcemia. A bactéria cresceu aos montes em todas as análises colhidas da criança e essa resposta poderia ser dada à família.

Com ou sem resposta, eles precisavam saber que muitas batalhas são perdidas. E eu também precisava saber disso. Precisava saber que minhas mãos nem sempre seguram firmemente as mãos de alguém; que meu abraço pode ser uma arma mais potente que um cateter venoso, mas mesmo assim, pode falhar e não acalentar o suficiente; e que deixar a dor fluir não é falha, é só reconhecer que perdi. Mas o crime continuará lá.

Criminosa mesmo foi a morte que veio com tanta ousadia, atirando seus tijolos. Quanto aos meus crimes, não preciso de punição por tê-lo amado nos minutos em que segurei sua mão. Mas a impressão de que não deveria tê-la soltado até o final é que faz a lembrança ser mais corrosiva.

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