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BALDE DE ÁGUA CHEIO

Por Salvattore Mairton •
domingo, 22 de janeiro de 2017


 E se eu disser que estou num conflito interno que não consigo resolver? E se eu disser que esta noite foi difícil de pegar no sono, que foi difícil de levantar pela manhã, que até respirar me causou uma inquietação, o que você diria? Talvez me receitaria um antidepressivo ou tentaria me confortar dizendo que logo passa. Mas será que passa mesmo? 

 Já deve ter acontecido com você também, em meio aos pequenos problemas, sentir o efeito da própria presença. É aquele momento em que estamos prestes a dormir. Dente escovado. Banho tomado. Luz apagada. Até que alguns minutos depois ocorrem o inesperado: uma luz dentro de nós mesmos começa acender. Não raro, viramos à noite sem dormir. 

 Dias desses aconteceu comigo também. Deitado sobre a cama, flagrei-me pensando no que comeria no almoço, nas contas que tinha para pagar, planejei meu futuro até que senti uma overdose de tanto pensar — nada é tão horrível como pensar demais. Sabendo que não conseguiria dormir, acendi o abajur e comecei a ler A grande arte de ser feliz, do Rubens Alves. E logo nas primeiras páginas me deparei com a crônica Os olhos de Camila, que dizia: “quando um balde está cheio de água, não é possível colocar mais água dentro dele”. Intrigado, coloquei meus ombros pra trás e encostei-me à cabeceira da cama, como se estivesse lendo pela primeira vez algo que merecesse mais atenção. 
     


 Rubens Alves é uma das pessoas mais singulares que já conheci, sua desafetação me encanta (falo no presente porque segue entranhado dentro de todos nós). Sobretudo, era um homem intenso que sabia o que era felicidade e não estava disposto a negociar com ninguém. 

 O balde de água cheio, como indagou no livro, é sobre o homem adulto que passou a vida toda estudando, trabalhando, e, sem recompensa alguma, morre endurecido por não conseguir ver as pequenas coisas que acontecem ao seu redor. Todos os dias o nosso balde enche um pouco, e quanto mais cheio, mais endurecidos ficamos. 

 No entanto, isso que chamou de “balde de água cheio” pode ser também todas as nossas lágrimas contidas, todo barulho que carregamos dentro, todos os problemas e não apenas a quantidade de experiência que temos desde criança até quando adulto, mas todo sofrimento que insistimos em cultivar. Até que um dia acordamos esgotados, incapazes de ver a graça da coisa. O balde quando cheio impede de vermos à vida. Os nossos olhos veem às coisas, mas não os detalhes. 

 Por outro lado, o nosso balde fica cheio, também, por falta de introspecção. Acreditamos que ter o carro do ano é mais importante que estar bem consigo mesmo. Não pensamos que ao consumir enchemos cada vez mais o nosso balde, e com o balde cheio, gera a insatisfação, e compramos novamente numa busca frenética de felicidade — que viagem. 

 “Que a arte nos aponte uma resposta/ mesmo que ela não saiba/ e que ninguém a tente complicar/ porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer…” Lembra-se da música? Osvaldo Montenegro em meio aqueles versos disse também que não é preciso mais do que uma simples alegria pra fazer aquietar o espírito. Os sábios têm dessas coisas, de se esvaziar para entender o todo. A nossa crise existencial passa. Ela sempre passa. Consumir arte e devolver arte talvez seja o caminho. Nada como uma dose de poesia para poder esvaziar o nosso balde. 

Por: Leandro Salgentelli

Comentários via Facebook

39 comentários:

  1. Olá! Uma coisa que eu vivo falando para minha amiga é que o pior inimigo da gente é nós mesmo. Mas também pode ser o nosso melhor amigo. Depende do que a gente vai escolher. Está em conflito interno com consigo mesmo é uma luta difícil de ser vencer, mas as batalhas mais importantes são as mais difíceis.... Sua concepção de “balde de água cheio” é muito boa e triste. Se não aprendemos a valorizar e comemorar as pequenas coisas sempre estaremos em uma busca frenética de felicidade. Muito boa sua reflexão, as vezes é importante paramos e refletir. Beijos'

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    1. Leandro Salgentelli23 de janeiro de 2017 21:45

      Dayane, obrigado pelo comentário tão inspirador. Também acredito nisso: que não passemos o breve período que temos aqui dificultando a vida com pequenas chatices. Que estejamos sempre dispostos a esvaziar o balde para que, enfim, rir daquilo que nos transcende. A vida.

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  • Crislane Barbosa22 de janeiro de 2017 22:16

    Oi, Leandro!
    Amei seu texto. Uma pequena frase trás tantas perspectivas de reflexão.
    Me pego nessa insônia, com tantas preocupações na cabeça na hora que deito a cabeça no travesseiro. O balde está muito cheio e como fazemos para secá-lo?
    Beijão!
    http://www.lagarota.com.br/
    http://www.asmeninasqueleemlivros.com/

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    1. Leandro Salgentelli23 de janeiro de 2017 21:51

      Crislane (adorei seu nome, diferente), sim, uma pequena frase tem o poder de nos tocar profundamente. Talvez esteja passando pelo mesmo conflito que eu. Uma forma de se esvaziar é ouvindo uma boa música de modo que ela toque a alma, e nos faz relaxar. Ah, que com uma bom vinho do lado. Sempre funciona comigo, vibro boas energias e obrigado pelo comentário. <3

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  • Muito bom o seu texto, bonitas reflexões. Realmente, muitas vezes as coisas menos importantes são mais valorizadas por nós. Nós estressamos por bobagens, ficamos irritados e brigamos por coisas pequenas. Isso vai enchendo o tal balde de negatividade, mas gosto de pensar que também possamos ter um balde cheio de alegrias, como no "o copo estaca com água até a metade. Você pode escolher dizer que ele estava 'meio cheio' ou 'meio vazio'. Se optar por meio cheio, você olhou o que ele tem de bom; se optar pelo meio vazio, focou apenas no que lhe falta".

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    1. Leandro Salgentelli23 de janeiro de 2017 21:56

      Mari, me deu uma vontade de sentar contigo num barzinho, fim de tarde, e diante de um café ou um cálice de vinho, ficar refletindo. Refletindo com você. Adorei a frase, que optemos sempre pelo meio cheio, sempre. Um beijo bem grande. <3

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  • Manoel Alves (enoua)23 de janeiro de 2017 16:20

    Olá
    Adorei o seu texto, e estou vendo que ultimamente os blogs estão fazendo mais posts voltados à textos autorais e coisas do tipo, o que é uma boa tacada. Tenho muita vontade de expor meus trabalhos mas muita vergonha, pois nunca os mostrei a ninguém. Enfim, adorei as suas palavras de reflexão, até mais ver
    Bjs

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    1. Leandro Salgentelli23 de janeiro de 2017 21:58

      Manoel, obrigado pelo comentário. Expõe para o mundo seus escritos. Não tem nada a perder, apenas a ganhar. Um abraço.

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  • Olá, que texto perfeito para a época em que vivemos. É tanta pressão para sermos singulares e inovadores, que a gente corre o risco de terminar sufocados e sem saber quem somos. De vez em quando é necessário entornar o balde para reavaliar o valor da nossa vida e do que a torna especial. Obrigada por compartilhar esta reflexão! Abraços!

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    1. Leandro Salgentelli23 de janeiro de 2017 22:00

      Beta, é exatamente isso, consumimos o tempo todo de modo que estamos ficando asfixiado. Uma boa reflexão seu comentário. Um convite para olhar para dentro. Obrigado pelo carinho e por ter dedicado essas incríveis palavras. Um forte abraço.

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  • Olá,

    É bem inquietante mesmo quando estamos num processo de mudança e acabamos tendo "efeitos colaterais". No momento, estou passando por um período bem turbulento e isso está afetando o meu sono, ora não consigo dormir, ora durmo, porém não descanso. E é bem compilação viver nessas situações, mas temos que colocar o pé no chão e nos mantermos firmes.
    Adorei muito esse texto que tanto me fez pensar, parabéns ao autor.

    Beijos,
    entreoculoselivros.blogspot.com

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    1. Leandro Salgentelli27 de janeiro de 2017 13:07

      Thayenne, sei exatamente esse sentimento que descreveu, mas se algum conselho servir, diria para que não deixasse de fugir da dor, da solidão, ela faz parte de nós e é um processo para o encontro daquela que ficou abafada dentro de você. Obrigado pelo seu comentário tão lindo. Um beijo carinhoso.

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  • Oiee ^^
    Ainda não conhecia a música do Oswaldo, e nunca li nada do Rubens, mas adorei esse texto. Sempre vemos histórias de pessoas que passam a vida toda desejando bens materiais, e que, em leito de morte, percebem que não viveram, e que não aproveitaram as pequenas coisas, né? E é tão difícil imaginar que isso pode acontecer conosco, mesmo que tentemos fazer o contrário. Duvido que exista uma pessoa nesse mundo que nunca tenha se sentido da forma como foi descrita lá em cima :/
    MilkMilks ♥
    Milkshake de Palavras

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    1. Leandro Salgentelli27 de janeiro de 2017 13:10

      Dryh, que comentário mais lindo. Exatamente, a nossa cultura emburra cada vez mais para o consumismo, como se a vida dependesse disso, como se ao consumir estaríamos justificando nossa existência, quando na verdade o processo é inverso, cada vez que compramos matamos a natureza, cada vez que compramos abrimos mais o buraco dentro da gente. É uma pena. Um beijo grande.

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  • Oie!
    Realmente, tem momentos da vida que estamos cheios de algo, revoltados da vida.
    É momento de jogar tudo o que é de ruim fora e começar algo novamente, ter a oportunidade de recomeçar.
    Uma ótima reflexão!
    Bjks!
    Histórias sem Fim

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    1. Leandro Salgentelli27 de janeiro de 2017 13:11

      Carla, obrigado pelo comentário tão singelo e verdadeiro. Que recomecemos sempre que for necessário, só assim chegaremos mais próximo daquela verdade que levamos entranhado. Um beijo.

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  • Rosana Gutierrez25 de janeiro de 2017 04:48

    Olá
    Nossa, realmente seu texto é aquele que lemos e nos identificamos.
    Uma reflexão muito verdadeira.
    A vida é feita das pequenas coisas, precisamos aprender a valorizar isso.
    Bjz

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    1. Leandro Salgentelli27 de janeiro de 2017 13:14

      Sim, Rosana, precisamos aprender a valorizar uma árvore, uma flor, o por do sol, e parar de consumir e respirar os aranhas céus. Obrigado pelo comentário e um super beijo. <3

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  • Oi!

    Eu sempre estou cheia de alguma, positivamente ou negativamente. Conhecia a música e adoro a reflexão e a batida/sonoridade que ela traz. precisamos aprender tantas coisas ainda... Eu adorei o seu post. :0

    bjs!

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    1. Leandro Salgentelli27 de janeiro de 2017 13:15

      Anelise, eu adorei seu comentário, tão singelo e tão carinhoso. Essa é a dádiva da vida: aprender a todo instante. Obrigado pelo comentário e volte sempre. Beijos.

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  • Eu acho que nunca é tarde para esvaziarmos um pouco o balde e ter conquistas e experiências novas em nossas vidas, não é mesmo? Achei o texto lindo e reflexivo. Pensar muito às vezes cansa mesmo, temos que viver mais, se desapegarmos das coisas ruins.
    Um abraço!
    www.apenasumvicio.com

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    1. Leandro Salgentelli30 de janeiro de 2017 20:04

      Dessa, adoro seus comentários, sabia? Obrigado pelo carinho de sempre. Você tem razão, para ver a graça da coisa é preciso desapegar um pouco do nosso lado brocotó e abrir o espírito para o que está por vir. Um beijo bem carinhoso.

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  • Priscila Alexandre31 de janeiro de 2017 20:59

    Nas circunstâncias que você disse: banho tomado, dentes escovados, deitada na cama com luzes apagadas as vezes me vema cabeça tudo que ainda preciso fazer e eu to la, dormindo! huahuahuah! ou então me lembro de algo que eu acabei me esquecendo de fazer ou esqueci que fiz ai entro em pânico!

    Mas a reflexão de Rubem Alves é bem válida, ainda mais em nossos dias em que tudo é corrido e nada é realmente absorvido. Já somos criaturas cheias - cheias de gente, de problemas, de confusões, de desejos - que realmente já não sobra espaço para mais nada. Precisamos saber esvaziar nossos baldes, só assim poderemos aproveitar mais nossas vidas e a vida em movimento ao noso redor.

    Ótimo texto!

    Abraços!
    www.asmeninasqueleemlivros.com

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    1. Leandro Salgentelli1 de fevereiro de 2017 13:25

      Prih, que recado lindo. Adorei seu comentário. Obrigado por sempre estar aqui comigo, viu? Rubem Alves inspira a mim e a muita gente por aí. Ele foi singular, um homem que não estava disposto a negociar a sua leveza, que a gente aprenda fazer isso cada vez mais, pois só com leveza a gente vai conseguir esvaziar o nosso balde. Beijos. <3

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  • Olá
    uau é um belo texto para pensarmos e refletirmos principalmente sobre nossa vida em geral e as experiências que temos e passamos ao longo dela, adorei, parabéns

    beijos
    http://realityofbooks.blogspot.com.br/

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    1. Leandro Salgentelli2 de fevereiro de 2017 15:03

      Catharina, obrigado pelo comentário e pelo carinho de sempre. Um beijo carinhoso. <3

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  • Olá! Me identifiquei muito, desde que há dias que vejo o sol nascer revirando na cama por conta dos milhões de pensamentos/preocupações que me invadem, rs. Adorei a sua reflexão, despertou em mim algo que eu preciso trabalhar no momento.

    Beijos!

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    1. Leandro Salgentelli4 de fevereiro de 2017 15:17

      Marilena, obrigado pelo comentário tão carinhoso. Fico feliz que tenha se identificado com o texto. Volte sempre, um beijo.

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  • Leandro, por um tempo da minha vida o meu balde estava bastante cheio, de decepções, de receio, de medo... E sabe o que eu fiz quando não aguentava mais? "Derramei" tudo isso e deixei-o vazio para coisas novas e boas chegarem, e a partir do momento que fiz isso, muitas coisas boas estão vindo.

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    1. Leandro Salgentelli6 de fevereiro de 2017 13:37

      Italo, que comentário bacana. Adorei. Como disse certa vez uma filosofa que amo muito, Viviane Mosé, para a gente pensar, sentir, existir, precisamos do vazio. Que bom que funcionou com você. Obrigado pelo comentário. Abraço.

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  • Oi Leandro, tudo bem?
    Primeiramente meus parabéns pelo post, achei o texto maravilhoso e muito reflexivo, você disse tudo sobre nosso sentimento interior e nosso conflito com nós mesmos. Quem nunca se sentiu assim? que atire a primeira pedra né? Adorei!

    Beijos

    http://www.oteoremadaleitura.com/

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    1. Leandro Salgentelli15 de fevereiro de 2017 17:08

      Kétrin, adorei seu comentário. Obrigado pelo carinho. Que bom que consegue te capturar, sinal de temos algo em comum. Seguindo o blog, super beijo.

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