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[FRANCA MENTE] OS DEVOLVIDOS

Por Francine S. C. Camargo •
domingo, 20 de setembro de 2020


           

No epílogo da tarde, quando a escuridão já começava a delinear o seu enredo, nós acordamos. Os olhos ardiam após dias ininterruptos em que as pálpebras se uniram, findada a despedida; tínhamos os lábios rachados e a boca seca, com sede voraz quase a ocultar os demais sentidos, de tão intensa; odores não sentíamos, orelhas se compungiam pelo não mais ouvido, enquanto algumas dezenas de pernas se arrastavam descoordenadas, com pouca pressa, detendo os passos em uma marcha rasteira, entretanto com um propósito claro: chegar ali, bem ali, a pouco mais de vinte passos, do portão negro do cemitério.


Era o portão principal de acesso à grande enfermaria dos mortos, por onde passavam todos os dias visitantes saudosos, trabalhadores, cúmplices e novos vizinhos. Em tempos atuais, ouvimos alguém comentar - como quem não faz questão de prestar atenção na conversa alheia, mas isso ocorre inevitavelmente – que a entrada já estaria fechada a essa hora do dia, antecipando o romper da noite, impedindo a chegada de qualquer um a perturbar o descanso já bastante descansado das almas que aqui jazem. Regra nenhuma havia, no entanto, a bloquear qualquer trânsito na direção oposta. Fato: não era o portão da entrada o que tanto objetivávamos, pois para nós, ele se intitulava unicamente como O Portão de Saída.


Vejam bem, não se tratava de uma horda de zumbis. Oh, por favor, não nos encarem como mortos-vivos, almas penadas, assombrações, espectros de indivíduos que não encontraram sua paz, que não terminaram seus deveres, que ainda têm algo pendente a resolver. Deveres até os temos, mas vocês não imaginam quão exaustivo foi todo o processo de seleção, a quantas reuniões nos submetemos, em quantas eleições votamos e a quantidade de avaliações teóricas e práticas que todos nós fizemos para estarmos aptos a sair dessa necrópole. Sem exceções, todos tiveram chances iguais, mas, ao final do processo, poucos foram os escolhidos.


De modo que somos em treze. Treze resgatados. Treze desistentes do plano A e retomados no Plano B. Porque o plano A era continuarmos mortos, uma vez que era esse o desígnio que nos foi imposto e o Plano B será uma repescagem de mais alguns anos vivendo fora daqui. Somos treze na arte de tentar contornar os planos alheios e garantir um pouco mais de vida livre. Ou como preferimos nos autointitular, os Treze Devolvidos.


Um de nós é o Ledo (o contente), outro é Bamba ( o sábio). Temos Dolores ( a sensível), Sintoni (o empático), Idea (a sonhadora), Tino (o inteligente), Belo (o formoso), Lhano (o leal), Serena (a paciente), Anima (a otimista) e Amor (o próprio, esse que a vocês conta a história, tal como aconteceu). Para completar o time, vieram de mãos dadas, após anos de relacionamento em épocas remotas, Benê (a bondosa) e Franco (nosso mais honesto morador).


Ao chegarmos ainda um pouco desengonçados ao átrio, todos paramos. Foi Anima, a otimista, quem empurrou o portão, enquanto escutamos todos em silêncio aquele rangido longo e cheio de emoção. Talvez nosso tempo passasse diferente, então não seria possível descrever nessa narração os minutos exatos que transcorreram enquanto reaprendíamos o inspire/expire e deixávamos que nossos sentidos recobrassem suas funções. Olhamos incansáveis uns aos outros, tentando adivinhar quem daria o primeiro passo, pois nossa estratégia estava desenhada apenas até ali, um pouco por falta de conhecimento do mundo externo, um pouco porque se houve algum aprendizado que pudemos obter por estarmos aqui foi: quer fazer Deus rir, faça planos...


– Vamos colocar nossos pés lá fora e então, escutar o que há para ser escutado, enxergar o que há para ser enxergado, tocar aquilo que se permite ser tocado, sentir o que houver para sentir, entender o que puder ser entendido.


Era Bamba que falava e, sem questionar, todos assentiram.


Então paramos, naquele ponto em que estávamos. E o mundo se descortinou, exibindo-se nu para todos nós que o assistíamos.


Vimos uma dor muito dolorida enternecendo e apequenando algumas pessoas. Ao redor dessas, muitos observavam, mas quase ninguém chorava junto. A uma pequena distância dessa dor, havia uma parede bloqueando a visão de novos rostos, mas pudemos ver dedos em riste: era para os seres doridos que apontavam, deles que debochavam, era a eles que julgavam, cuspindo o que chamavam de “nossa moral” e digitando ódio e escárnio pelas telas de seus aparelhos móveis.


– É ali que vou ficar – antecipou-se Sintoni, o empático. Junto a ele, caminhou  Dolores, a sensível.


Vimos rostos fechados, em melancolia. Vimos pessoas acreditando nas primeiras linhas que liam, sem crítica ou contestação. Vimos educadores se virando do avesso para tentar suprir as limitações das telas, ao mesmo tempo em que eram alvo de reclamações pelo que era possível fazer.


– Precisamos ficar por aqui mesmo – era a vez de Tino, o inteligente, acompanhado de Ledo.


Vimos solidão e medo, pessoas enclausuradas dentro de suas casas, fazendo de seus corpos o próprio casulo, existindo sem ser. Tinham pensamentos constantes do fim, de desistir, de desesperança e inutilidade.


Foi onde Anima, a otimista, e Idea, a sonhadora, permaneceram.


Vimos doença, vimos incerteza, vimos ausência de cura. Vimos boatos, vimos mentiras, vimos desinteresse em governar para os outros e interesse demais em governar para si mesmo.


É escusado dizer que nos despedimos de Franco, o honesto, e Serena, a paciente bem ali.


Vimos valores sendo quebrados, amizades desfeitas por palavras atravessadas, frases repetidas da boca pra fora, bandeiras sendo erguidas por 2 ou 3 segundos e esquecidas dentro de um caixa ao final do dia.


– Fico por aqui – impôs-se Lhano, o leal.


Vimos muitos comentários, opiniões, regras, conselhos sobre o hoje, sobre o ontem, sobre o dólar, sobre a mídia, sobre o corpo e sobre o batom, sobre a buzina, sobre o cachorro, sobre a pele, sobre o botox, sobre a roupa, sobre a cor, sobre o namoro, sobre o sexo, sobre o que pode, sobre o que não pode. Liberdade vimos pouca, muito pouca mesmo. Parecia bem difícil ser você mesmo nesses tempos. Vimos muita maldade sendo aplaudida, então Benê, a bondosa, ficou exatamente ali.


Belo, o formoso, caminhou incansável por todos os cantos, a fim de lembrar das belezas do mundo: as folhas cantantes, as cores exuberantes da natureza, céu e mar se beijando todos os dias sem que se percebam, ventos que sopram seus murmúrios de esperança, Sol e Lua com seus aspectos divinais e capazes de iluminar os caminhos mais escuros; água, terra, ar e fogo se unindo ao espírito.


Bamba, o sábio, contudo, continuou em frente ao portão.


– Meu tempo ainda há de vir. Vou retornar e me deitar enquanto espero. Há muito trabalho para todos vocês, até que eu possa me fazer presente.


Dizendo isso, retornou lentamente a sua sepultura, com o olhar ao céu em todo o trajeto, cantarolando algumas canções antigas, sem receio de desafinar.


Quanto a mim, Amor, designado em mim mesmo, entendi que, mais do que estar em todos os lugares, melhor faria se me dividisse em pedaços, em quantas míseras fatias fossem suficientes para repaginar cada vida em desalinho. E assim, dividido em infinitos pontos, me dispersei sem pressa de me reconstituir e o curioso é que só me multipliquei e cresci, tornando-me muitas formas completas de mim mesmo.


***


Desde então, o mundo foi sendo repovoado, aos poucos, por empatia, inteligência, alegria, otimismo, sonho, honestidade, paciência, lealdade, bondade, beleza, sensibilidade e amor, embora os Devolvidos saibam que anos passarão até atingirem o seu intuito. Mas não há urgência, já que foram escolhidos para um longo trabalho. Quando tudo estiver reconstruído, talvez muito mais pessoas carreguem um pouco de sabedoria e saibam que, ao final, tudo que nos restará é descansar.


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