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[FRANCA MENTE] A CONFISSÃO

Por Francine S. C. Camargo •
domingo, 5 de abril de 2020

 O QUE REVELAR EM UMA CONFISSÃO?

 Especifico: falo mesmo de padres e sacrilégios, daquele momento olho a olho, dos minutos inacabáveis em busca do perdão divino, da soltura dos males que afligem há tempos ou tão somente da busca pelo sacramento.


 Seria interessante planejar bem como seria a minha estadia no confessionário, para que tudo flua da forma menos traumática possível e eu possa adquirir o certificado de conversão no coração.

 Quanto aos gestos, o que demonstrar? Pálpebra caída, com cara de desventurada, cabeça baixa, postura de arrependimento, a voz um tanto embargada, em volume baixo, para não assustar (e também para não correr o risco de que meus pecados transpassem as paredes e cheguem até os curiosos na sala de espera). E se falar bem rápido, de uma maneira quase ininteligível, talvez em idioma estrangeiro, será que ele pediria para eu repetir ou deixaria estar, que o tempo urge? E se puder fazer isso por escrito, uso e abuso da minha literatura e fica assim mais fácil alcançar o perdão?

 Poderia somente me calar e esperar que o coração fale por si, já que o silêncio também é uma forma de confissão ou assim a comunicação se extinguiria?

 Estava determinada. Com os olhos voltados para dentro e as mãos largadas ao longo do corpo, eu diria quase sem pausas e apressando as orações:

– Padre, nada de errado me surgiu à mente, exceto o fato de que pouco tenho vivido. Externamente vivo em um deserto, mas internamente sou como uma cidade bombardeada sem entender de onde o inimigo vem. Minha alma vive em constantes terremotos, as horas subjugam minhas vontades, logo, nada faço, não me movo e pouco sei.

 (E assim, torço para que não desaguem as lágrimas, mas que mesmo assim ele acolha meu ar romanesco diante de minha biografia tão pouco objetiva, mas cheia da definição dos meus dias)

 Mas o que dizer sobre o concreto? Não feri ninguém de propósito, não fui cruel, não profanei, não transgredi leis e nem executei pequenas (nem grandes) corrupções. Quando fui ofendida e traída, me calei (ou deveria ter oferecido a outra face?) e no meu canto fiquei. Nem todas as palavras eu disse e quando telefonei, desliguei, foi engano. Às vezes, esqueço uma vírgula, não termino as orações com ponto final, mas isso porque tudo em mim pede reticências. Não ostento qualidades que não possuo e mal enxergo as que dizem que tenho, só gosto de olhar no olho, cuidar e lidar com zelo. O que dizer se não roubei, não me excedi, não bebi e nem caí, tão pouco morri, mas chorei e cansei dos desencontros...só que os pontos não entrego.

 Ao ser cruamente retirada dos devaneios quando meu nome soou na sala de espera pela redenção, levantei-me e entrei, não sobrando alternativa que não fosse sentar à frente daquela figura familiar do meu avô. Não era meu avô obviamente, no entanto, o sorriso discreto no canto da boca, os olhos brilhosos e as maçãs do rosto salientes e rubras eram quase um convite a um abraço. Diante dele só me restou sorrir e deixar de lado os tiroteios e cinzas e falar do concreto.

 – Padre, é o seguinte: quero contar o que anda acontecendo de bom na minha vida.

 Não houve perdão pelas faltas, penitência ou crises de consciência. Mas houve reconciliação e essa, nem precisou ter sido confessa.

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