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[ENTRE CONTOS E CLÁSSICOS] TÁ NA HORA DO CLÁSSICO: O SONHADOR ATADO EM SUA SOLIDÃO, NA OBRA DE DOSTOIÉVSKI

Por Francine S. C. Camargo •
sábado, 8 de fevereiro de 2020
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Durante uma das singulares "noites brancas" do verão de São Petersburgo, em que o sol praticamente não se põe, dois jovens se encontram numa ponte sobre o rio Nievá e dão início a uma história repleta de fantasia e lirismo. Publicado em 1848, na contracorrente de sua época, que privilegiava o Realismo, este livro é, na obra de Dostoiévski, aquele que mais se aproxima da escola romântica. Não apenas pelo tipo do Sonhador, figura central da novela, mas também pela atmosfera delicada e fantasmagórica, que envolve a trama, o cenário e os protagonistas.

Aqui, a própria cidade de São Petersburgo — com seus palácios e pontes, seus espaços monumentais — revela-se como personagem. Não por acaso, Noites brancas atraiu a atenção de diretores de cinema como Luchino Visconti e Robert Bresson, que procuraram traduzir para a tela todo o encanto desta que se tornou uma das obras mais famosas de Dostoiévski — agora pela primeira vez no Brasil em tradução direta do russo.



DEPOIS DE ANOS devaneando por Crime e Castigo, Os irmãos Karamazov, Recordações da Casa dos Mortos, O Jogador,  O Idiota - tendo sido todas essas obras esgotadas em falatório e adoração - já era tempo de voltar à aurora do brilhante Fiódor Dostoiévski e buscar algo mais concreto, porém inusitado: a novela Noites Brancas.

 Diante de fortes pitadas de romantismo, é possível descortinar todas as páginas (ou as quatro noites) de uma só tacada, sem intervalos para se aprumar na poltrona, tomar um café ou se incomodar com a tragédia existencial e os extremismos em palavras do personagem principal. Pelo menos, não é durante a narrativa que o desconforto povoa a leitura.

 O leitor sequioso por novidades pode até presumir que se trata de um romance. Pode entender a cidade em que se desenrola a história como personagem principal. Pode superar os excessos das confissões e justificativas contidas nos diálogos e estabelecer o amor e a devoção amorosa (ah, o amor) como tema central. Entretanto, é inevitável enxergar que a solidão de cada um, clamada ou sonegada, é o que guia a memória do narrador, do começo ao fim.

 Intitula-se de o Sonhador o protagonista. Seu nome, de fato, é desconsiderado em todo o romance. Ele vive sua rotina de trabalho sem questionamentos, deixando para viver a vida ao final do dia, quando aparece a noite branca, expressão essa que faz referência ao fenômeno climático das noites do início do verão, em que o sol não se põe, permanecendo abaixo da linha do horizonte e, portanto, não anoitece. Isso gera um atmosfera quase delirante em que a escuridão dá lugar a um manto diáfano, mas suficientemente claro, para que os arredores sejam consumidos por ele.

 É nesse momento que ele traz alma e sentido à cidade em que mora (São Petersburgo) e a tudo que o rodeia, como, por exemplo, as casas em seu caminho, que ganham vida, diálogos entre si e um certo tom de resignação. E julga, dessa forma, conhecer melhor aqueles  com quem esbarra ou cruzam os seus passos, ficando sempre num quase sorriso, num quase cumprimento, numa quase troca de palavras, a um fio de estabelecer alguma relação com alguém de carne e osso, voz, toque e desafio. O Sonhador cria, então, intimidades mentais com a cidade e com os moradores, sendo ele mesmo uma sombra pouco notada ou lembrada, já que mantém seu habitat unicamente dentro de si mesmo. “(...) como se todos tivessem me esquecido, como se eu fosse, de fato, um estranho para eles!”  E são, justamente, essa mesmice e o gosto pelo conhecido que trazem a segurança de não sair do lugar, mesmo quando muitos já estão partindo.

Sou um sonhador; tenho tão pouca vida real, que momentos como estes que presentemente vivo, por demais preciosos, não posso deixar de os repetir nos meus sonhos.

 Porém, Dostoiévski traz o amor, a paixão repentina vivida intensamente por meio da linguagem, do escambo de palavras e entendimento mútuo (ao menos no pensamento fantasioso e enclausurado do personagem central) em quatro noites. Ela, Nástienka, menina ingênua, armada de sonhos, já que tem sua liberdade tolhida, passa os dias atada à saia da avó, tendo ainda como companheira uma criada surda. E ele, o Sonhador, segue igualmente atado a sua solidão sem costura. E tudo o que os aproximam são lágrimas e alguns gritos, suficientes para dar início a longos instantes de conversas, banhadas pela claridade das horas e iluminadas pela brancura da noite.

Agora não lhe interessam essas miudezas! Agora ele é rico de sua própria vida.

 À medida em que descreve a ela o quanto o seu contato com o mundo externo é escasso, burocrático e vazio, aumenta o interesse e admiração da doce e sonhadora Nástienka, que, na ocasião dessas conferências, vive uma desilusão amorosa, a hesitação da espera, necessitando de ajuda imediata. Ela busca, com seu interlocutor, conselhos para a melhor resolução de seu impasse. E segue o tema do amor, a dúvida amorosa, a entrega, a ilusão, o amor em fatias, o amor inventado, o amor em barreiras, o amor impossível, como queira chamar.

 O que se afigura como um encontro de almas, onde cada um deles divide com o outro sua história e seus anseios em quatro noites, conduz a sequências de diálogos plenos o suficiente para proporcionarem a felicidade súbita, extirpando momentaneamente a solidão abusiva e a reclusão de duas pessoas que vivem de seus sonhos e inventividades.

 Juntos eles criam noites alvas e misturam sonho e realidade, redecorando os dias, clareando a alma, sondando novos terrenos e debatendo sobre os antigos. A timidez pode esperar, pois chegou o tempo de amar inadvertidamente.

 E surge, assim, a oportunidade de ele, o Sonhador, reconciliar-se consigo mesmo, rebelar-se contra sua incomunicação e passar a viver um pouco o que é autêntico, apaixonando-se pelo real e ganhando de si uma desejada absolvição.

Na verdade, com frequência estamos tentados a crer que toda essa vida não é uma criação do sentimentos, nem um jogo caprichoso, inconsistente e uma imaginação enganosa, mas uma realidade verdadeira, algo que realmente existe, algo real e palpável.

 Resta, porém, após quatro noites, uma manhã melancólica, ainda carregada de lirismo, uma finalização efêmera de que foi possível ocupar as vizinhanças por alguns instantes e sentir alguns flagrantes de felicidade. E esses restos, meras recordações, podem preencher uma vida inteira para quem sonha, já que a realidade dá bastante trabalho.

Por: Francine S. C. Camargo

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