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[CRÔNICA] CARTA A UM LIVRO

Por Francine S. C. Camargo •
domingo, 3 de fevereiro de 2019


Querido amigo

Estou esgotada ultimamente, mas é em você que encontro companhia e meu coração se transforma ao tê-lo tão contíguo todos os dias, ao meu alcance à estante ou na cabeceira da cama.  Acredite, embora nem sempre eu o carregue, você está comigo ao longo do dia, nem que seja em minhas aventuras mentais.

Pois você, prezado amigo, enriquece meus dias  desde os primórdios, tornando-se ora platéia, ora espetáculo, ora conselheiro, ora ouvinte. Fiel, invasivo, permissivo, indulgente e, às vezes, lancinante. Você me leva dessa esfera, se fugir for meu intento, traz-me de volta quando o susto me corrói. Pavor, pranto, desconsolo, ambiguidade: em mim você já viu de tudo.

Você estava lá quando eu o namorava à distância na estante, e dedicou-se a mim, sem recato, quando me prometeu desvendar as palavras que eu ainda nem discernia. Abriu-se a mim no conto adolescente, no conhecimento da língua portuguesa, inglesa, nas histórias do meu país, nas ciências exatas e nas inexatas, impregnando-me de amor pelo que faço, a qualquer hora do dia.

Desejos de ser...a esses você assistiu e até colaborou um pouco! Quis ser bruxa, ganhar um netsuquês, conhecer o deserto dos tártaros, criar um emplastro e até devorar uma barata. Reconheci-me meio gauche, e constantemente uma Miguilim; julguei ter lábios de mel, e entendi um pouco mais sobre a solidão humana. Estudei as revoluções, a mitologia grega, céltica, a traição ou não daqueles olhos de ressaca.

Houve épocas em que vivi na Terra Média, que larguei a escola comum para estudar em Hogwarts e não me conformava, de forma alguma, em voltar para a minha rotineira realidade.

Gargalhei dias seguidos com a história bíblica contada às avessas, com todo respeito, e não queria desvencilhar-me de você quando terminamos. E, questiono, as vezes, a célebre pergunta: tudo é permitido?

Em você, tive a maior lição da vida: de tentar ser quem eu sou e ter a liberdade de não adquirir modos nem formas, vivendo apesar de, e pensando quase sem palavras. Foi quando você me viu expulsar de minha bagagem um grande amor e eu diria hoje que “o resto é silêncio”.

Ah, caro amigo, ventos uivaram e suspiraram, crimes se alastraram pela consciência, corvos aterrissaram em minha janela e até hoje me pergunto porque aquele pé de laranja foi arrancado, por que aquele rosto foi desfigurado, porque Nietzsche nunca chora e por que a vida tem que ser assim, tão severina.

Mas você não tem todas as réplicas. Algumas delas estão nas próximas páginas, capítulos ou sequências. E outras tantas suspeitas terminam em reticências. E você, meu amigo, estará comigo, em todas as entrelinhas, interrogações e até nas folhas em branco, quando nada puder ser dito. E sempre que nos permitirem, você portará meu berro, meu desabafo, enquanto o sonho puder ser meu.

Enquanto puder te tocar, meus olhos puderem te ler e o seu cheiro se fizer presente nos meus sentidos, não te abandonarei. O que quero é o prazer dessa solidão acompanhada, meu amigo, meu mestre, ainda tenho tanto a aprender...



* Algumas obras citadas: Harry Potter, A lebre com olhos de âmbar, O deserto dos tártaros, Memórias póstumas de Brás Cubas, A paixão segundo G.H., Alguma poesia, Corpo de baile, Iracema, A idade da razão, Dom Casmurro, Senhor dos anéis, Caim, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Hamlet, O morro dos ventos uivantes, Crime e Castigo, Histórias extraordinárias, Meu pé de laranja lima, O retrato de Dorian Grey, Quando Nietzsche chorou e Morte e vida severina.



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