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CORAÇÃO X CÉREBRO

Por Francine S. C. Camargo •
segunda-feira, 9 de julho de 2018
“O cérebro é o meu segundo órgão favorito.”
- Woody Allen

 – Fique quieto!
 – Você precisa me escutar...
 – Não. Não quero ouvir.
 – Não me deixe aqui sentindo tudo sozinho...
 – Chega! Você não manda mais aqui.

 E virou as costas, desviando seu caminho. O parceiro de tantas paixões, amigo Coração, ficou ressabiado dentro do seu recanto. Foi designado a ele que não saísse de lá, que não exercesse mais função afetiva e continuasse seu trabalho habitual de tocar o sangue para frente, bombear sem titubeios, definir o fluxo, deixar passar, sendo somente motor, apesar de seu potencial eminente.

“Quando se amarra bem o próprio coração e se faz dele um prisioneiro, pode-se permitir ao próprio espírito muitas liberdades.”
 - Nietzsche

 Se era o espírito ou razão que a controlariam, ainda não sabíamos nesse momento da história. O que ficou bem claro, fato consumado em sua totalidade, foi que apesar de cheio de água vermelha, o Coração ficou oco, dolorido em sua umidade. Fora deixado em paz, mas paz mesmo não encontrou. Esse golpe não esperava.

 Cabreiro e abandonado, foi posto de lado pela primeira vez na vida. Sempre fora o Conselheiro-mor., o primeiro a ser inquirido, o autor da palavra final. Ela seguia o que o Coração mandava.

 O que você sabe, Coração?

 Ele sempre sabia, mesmo não entendendo. Acertava até quando só palpitava, de palpite mesmo e, às vezes, de palpitação, quando a adrenalina o subjugava. Queria só dizer a ela que não esquecesse o amor, mas teve as portas trancadas.

 No entanto...alguém chegou para assumir o posto.

 “Ninguém se mexe! Meu cérebro caiu” 1

– Deixe eu colocar ordem no recinto.
– Sim, sim, a casa é sua agora.
– Sempre foi, minha querida, sempre foi. Mas deixei você se iludir um pouco, pois sabia que no tempo certo voltaria para mim.
– Nossa, fui tão imatura que me envergonho disso.
– Sim, é hora de se envergonhar mesmo. Mas vou cuidar de tudo.

 E foi assim que o Cérebro, aquela figura amedrontadora por ser tão dono de si, altivo e colossal mesmo com sua pouca estatura, pisoteou fortemente nos vestígios de amor jogados ao chão a fim de não os deixar mais tomar vida.

 – O resto é só apêndice.

 Eis que se estabeleceu a partir disso a dinastia da Razão. Abaixo os medinhos! Abaixo as lágrimas! Abaixo os sentimentos abafados! Abaixo a cegueira! Abaixo os mergulhos em abismos! Abaixo as gotas d’água e os desfechos de festas, Chico. 2

 – De hoje em diante, é permitido ser ambíguo e transformar. É permitido deixar ir. Pode-se esquecer, mas não se pode confiar em demasia, somente em si mesmo. É permitido deixar morrer e seguir adiante. Não é aceito mais ficar no mesmo lugar. É obrigatório expulsar o que não cabe mais: os anéis, os sapatos, as mágoas e os receios. Xô sensibilidade que destrói, que condena, que faz com que você pare a vida para se coitadizer!

 Esse Cérebro era autoritário, mas sabia das coisas e suas regras eram para que ela se redimisse do passado e abandonasse seus pesares. Não era de todo mau, buscava somente ajeitar a casa.

 Só que quando tudo parecia novamente calmo, sem ondulações, não foi fácil fingir que ninguém chamava...

 – Ei. Olha para cá.
 – Hein?! – Ela não entendeu.
 – Olha aqui para dentro. Acorda, vai.

 Como ela não era mais responsável pelo que acontecia lá dentro, embora estranhasse aquela solicitação, não se preocupou em responder. Quem o fez foi o Cérebro.

 – O que você quer?
 – Quero sair.
 – Para quê, amigo? Não há nada a ser feito por você aqui fora.

 Coração e Cérebro estavam longe de ser amigos nessa fase, a rivalidade clamava por briga, eles guerrilhavam em silêncio o tempo todo. Quem dominava era o Cérebro, mas Coração esperava sua vez.

 Era sua hora. Bateu forte, cada vez mais veloz.

 Tum-ta. Tum-ta. Tum-ta. Tum-t. Tum-t. Tum-t. Tum. Tum. Tum. Tu. Tu. Tu. T. T. T.__________________________________________________________________.

 Até fazer silêncio.

 Ouviu-se ao longe:

 – Paradaaaaaaa!!!!

 E deram início à reanimação.

 Enquanto massageavam e o Coração voltava a funcionar artificialmente, o Cérebro implorava:

 – Volta, amigo. Preciso de você.
 – ...
 – “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível a razão” – parodiou O pequeno Príncipe, o Cérebro em desespero.
 – ...
 – Abre, Coração, ou eu arrombo sua janela!!!! 3

 – ...
 – Juro que me adapto para escutar aquilo que você já sabia antes de mim.
 – ...
 E, como última tentativa, buscou na memória contida em si, algo que a dona daquele corpo lera em algum momento. E gritou chorando:

 “Não há nada que esteja menos sob o nosso domínio que o coração, e longe de podermos comandá-lo, somos forçados a obedecer-lhe.” 4


 – Tum-ta............tum- ta.............tum-ta...........
 – Vem governar comigo...
 – Tum-ta. Tum-ta. Tum-ta.Tum-ta. Tum-ta. Tum-ta...
 Sucesso na reanimação, o retorno da vida foi comemorado.

 Mas ninguém adivinharia o que se passava lá dentro. Na guerra nada fria e sim efervescida que havia se desenrolado, ninguém venceu, por fim. Minto, quem venceu foi ela, a proprietária dos órgãos, que de um dia para o outro teve sua vida organizada, ora com bom humor, ora com vontade de sumir; ora cultivando flores, ora dando ouvido aos livros; ora ficando em casa, ora vivendo a vida lá fora. A única condição essencial estabelecida foi fazer tudo isso com todo o seu ser, em sua plenitude, o que, nesse caso, significava “de coração e cérebro”.

 E quando o Cérebro já irritado enlouquece com algumas das opiniões do Coração que são contrárias às suas, ele implica novamente:

 O que você sabe, Coração?

 E ele responde, com a leveza de quem partiu e voltou, com a sabedoria de quem não pode mais ficar sozinho:

 Sei o tanto que você sabe, Cérebro. Só que banhado de amor.




APÊNDICE:
1. Frase de Jack Sparrow, em Piratas do Caribe.

2. Música Gota d’água, de Chico Buarque.

3. Chico Buarque novamente. No original: “Abre o teu coração ou eu arrombo a janela”

4. Frase de Rousseau.

Comentários via Facebook

30 comentários:

  1. Paraíso Literário10 de julho de 2018 16:19

    Oi Fran!

    Tudo bem? Adorei o texto, realmente esse embate entre razão e sentimento é uma coisa que acontece muito, no meu caso na maioria das vezes ajo de acordo com o meu cérebro porque sou uma pessoa muito racional para ser levada pela emoção e quando acontece acabo me ferrando, então sabe como é né: gato escaldado...

    Infelizmente não acho que meu coração saiba o mesmo que meu cérebro e tenho que dizer que, sem dúvida, ele não toma as melhores decisões. Enfim, o texto é maravilhoso e cheio de reflexões interessantes.

    Beijinhos - Jessie
    www.paraisoliterario.com

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    1. Francine S. C. Camargo24 de julho de 2018 19:24

      Oi, Jessie, tudo bem e você?
      Obrigada pelas palavras...você vai ver, como diria a canção de Toquinho "que o certo você vai saber errando, errando, errando...". Deixa seu coração ganhar esse embate de vez em quando.
      Beijo.

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  • Oiee ^^
    Gente, fiquei arrepiada aqui, de verdade! "Sei o tanto que você sabe, Cérebro. Só que banhado de amor." me fez querer gritar igual quando algum personagem fala algo muito daora num livro ou filme, e a gente fica tremendo de animação, sabe? haha' eu AMEI ESSE TEXTO! Gente, que demais! Lindo lindo lindo!
    MilkMilks ♥

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    1. Francine S. C. Camargo24 de julho de 2018 19:26

      Ai, ai, li esse comentário pelo celular e tive que printar para guardar pra mim, obrigada pelo carinho, adorei sua empolgação com o texto, fez uma escritora feliz por aqui. Beijo, Dryh.

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  • Olá!
    Que texto maravilhoso!
    Acho que essa é uma guerra constante em muito aspectos da vida. Quantas vezes deixamos a razão tomar conta ou até mesmo o coração. É difícil encontrar esse equilíbrio, mas seguimos a vida tentando encontrar esse compasso ritmado entre esses dois maiores trunfos do ser humano.
    Beijos!

    Camila de Moraes

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    1. Francine S. C. Camargo24 de julho de 2018 19:27

      Oi, Camila. Equilíbrio difícil esse mesmo, né, às vezes acho que essa batalha não é nossa, eles que se decidam, por isso surgiu esse texto. Obrigada pelo carinho. Beijos.

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  • Oi Francine!
    Parabéns pelo seu texto. Está muito bonito!
    Achei muito interessante de se ler essa "guerra" entre o coração e o cérebro. É realmente difícil lidar com eles quando entram em conflito - e olha que isso é rotineiro.
    Bjss

    http://umolhardeestrangeiro.blogspot.com/

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    1. Francine S. C. Camargo24 de julho de 2018 19:28

      Oi, Carolina, muito obrigada. Guerra eterna entre coração e cérebro e a gente no meio, né? Beijão.

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  • Francine, seus textos sempre me envolvem e me encantam! Parabéns pelo talento belíssimo! Publique um livro reunindo seus textos maravilhosos! Quero tê-los na minha estante!

    Somos totalmente dependentes do coração e do cérebro. Tanto de maneira física, bem literal, quanto no aspecto sentimental. Não podemos viver apenas com um. Embora o Coração tenha mostrado o seu valor e desesperado o Cérebro que não poderia manter-se no poder sem o outro, o Cérebro também poderia ter demonstrado o quanto era essencial. Afinal de contas se o Cérebro morre o Coração nada é.rsrs É preciso conciliar. Como no livro Razão e Sensibilidade, de Jane Austen, que acaba por nos mostrar que não se vive só de Razão e nem só de Emoção. É necessário um equilíbrio.

    Bjs!

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    1. Francine S. C. Camargo24 de julho de 2018 19:30

      Olá, Luna, tudo bem?
      Obrigada pelas suas palavras, fico feliz pela sugestão e vou te contar que já tenho dois livros publicados, hehehe.
      Concordo com você e, nesse caso, no período da dinastia do Cérebro, houve grandes incrementos tb, não vejo como algo negativo ser guiado pelo Cérebro de vez em qdo. Beijão.

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  • Que texto interessante e tão pertinente quando sempre ouvimos e agimos no meio desta guerra entre razão e emoção. Adorei e já estou mando o link para todos os meus amigos.
    beijos

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    1. Francine S. C. Camargo9 de agosto de 2018 13:39

      Ivi, Que ótimo! Obrigada!!! Beijos.

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  • Olá!!!

    Que texto emocionante!!! Tão sensível e tão eloquente! É tão fácil se deixar ser dominado pela emoção, no meu caso, e a razão mesmo assim está ali...se fazendo sentir!
    Os pratos dessa balança são dificil de se equilibrar!!!

    Parabéns pela crônica!!!
    Beijos

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    1. Francine S. C. Camargo9 de agosto de 2018 13:40

      Muitíssimo obrigada, Ana. Beijos.

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