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CHÃO DA NOSSA CASA

Por Francine S. C. Camargo •
domingo, 29 de julho de 2018

“Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria? ”
- Caetano Veloso


 Livre não sou. O raciocínio reaviva a ideia de que sou livre sim, pois vou e volto sem amarras; eu me nutro de vida e pão, pão que eu mesma produzo. Mas, fisiologicamente, não posso ser livre, pois de alguém dependo, de algo dependo, só ainda não lhes dei nomes.

 Se sou livre, gosto de me fechar no meu universo, entre quatro paredes, com as portas bem fechadas, para que o outro não entre e venha me ferir.

 Mas hoje determinei que a janela seria aberta com circunspeção para divisar a paisagem lá fora. Minha miopia tantas vezes me confunde, atenuando certas imagens, ora desfocando, ora tirando um pouco de seu significado real. Será, então, essa cena distorcida diante de mim somente um reflexo de minha deficiência?

 À esquerda, desastre natural: tantos morrem afogados ou com o grito atolado pela terra que os amortece, vinda de cima, feito despenhadeiro. À direita: desastre somático: há quem feneça de sede, da aridez dos dias.

 À frente, a fumaça e o clarão na mata se avultam. Vejo luar, chão, fúria e pão se incendiarem junto. E meu peito arde um pouco porque só eu vi, ninguém viu, ouviu, sentiu os vestígios de destruição. Mas eu vi. E nada fiz, só calei.

 E eu, no meio disso, será que sou adaptável à sobrevivência de minha espécie, eu que não enxergo quem está ao meu lado, que não vislumbrava nada além da minha casa? Sou também um revés natural, quase pronto a emergir.

 Logo eu que pago os preços que as maquininhas me exibem; eu que nunca plantei nada; eu que me alimento com o que encontrar no prato; eu que vivo de palavras ao vento, palavras que são bonitas no papel, mas nada acrescentam de impacto para sociedade alguma, o que faço eu?

 Eu, no centro disso vejo as árvores desabarem, a água ser dissipada e o chão conspurcado e não sinto sede, nem calor e nem me falta o ar; eu, que diante disso, fecho minhas portas e me firmo no chão de minha casa, não consigo ver que estou também sendo devastada?

 Não se trata de miopia, era somente minha estupidez. Diante do verde tornando-se cinza e perdendo seu esplendor, vejo a vida inteira se esvair, enquanto eu me escondi da humanidade. Não, ninguém pode me ferir, e quem está ao meu lado, sem me defrontar, deve também carregar o medo de ser pisado, tornando-se ruína.

 Pois decidi que sei muito pouco de quase nada, mas não quero ser também pó, com o passar dos dias. Da ruína, pode nascer o novo e é possível gotejar verde nas cinzas que restam. É hora de arrumar esse chão de fora e preciso de companhia.

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32 comentários:

  1. Oie.
    execelente texto.
    me lembrou como nós seres humanos precisamos arrumar nossa vida ás vezes, as coisas ficam bagunçadas, suja e depende da gente fazer uma limpa.
    Sobreviver faz parte.
    Mas aprender a viver é algo especial!

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    1. Francine S. C. Camargo9 de agosto de 2018 13:24

      Obrigada, Helana. Sobreviver x viver...não é função, é missão. Beijos.

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  • Dayhara Martins1 de agosto de 2018 10:25

    Eu adoro seus textos, são sempre muito sensíveis e me fazem questionar não só o meu papel no mundo mas também o que tenho feito para as coisas melhorarem, isso é desafiador demais. Obrigada por compartilhar conosco essas palavras incríveis.

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    1. Francine S. C. Camargo9 de agosto de 2018 13:25

      Obrigada por estar sempre aqui, Dayhara. Que bom que a gente sempre pode questionar a vida e nossas atitudes, fico feliz de poder contribuir um pouquinho com esse desafio. Beijos.

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  • Heiii, tudo bem?
    Um texto que me fez refletir em como a gente as vezes quer se fechar, mas que é imporante nao se isolar e afastar os outros.
    Temos que tentar dar o melhor de nós mesmo e ter mais empatia nesse mundo tão cruel.
    Beijos.

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    1. Francine S. C. Camargo9 de agosto de 2018 13:25

      Suzzy, obrigada! Empatia...como falta, não? Beijão.

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  • Aline M. Oliveira4 de agosto de 2018 18:05

    Oi! Eu gosto muito de chegar aqui e ler esses textos da Fran. Acho que ela tem uma maneira muito real de exprimir os sentimentos e pensamentos, e gosto das reflexões que os textos trazem. Desse modo, como medir a liberdade, que as vezes parece prisão, ou como agir de frente a tantas coisas que podem machucar? Obrigada por compartilhar!

    Bjoxx ~ www.stalker-literaria.com

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    1. Francine S. C. Camargo9 de agosto de 2018 13:28

      Aline, que delícia ler esse carinho nas suas palavras. Acho que ninguém tem resposta para as suas questões, mas a graça é que a gente vai descobrindo dia após dia como se virar, errando pra caramba, escondendo-se, retomando...uma hora dá certo! Beijos.

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  • Oiiii,

    Adorei o texto! A liberdade é bem complexa e a maneira como tansicionamos durante o percurso da vida é igualmente complexo. Foi interessante ver pelos olhos de outra pessoa coisas que são uma parte de mim também, coisas que nunca fiz e a fragilidade de talvez nunca fazer.

    Beijinhos...
    http://www.paraisoliterario.com

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    1. Francine S. C. Camargo9 de agosto de 2018 13:29

      Aninha! Você tem razão, somos frágeis de todos os lados, mas podemos sempre aprender juntos...beijinhos.

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  • Oi Fran,
    Adorei o texto e fiquei muito contente com o final. Achei muito legal o que você disse sobre a miopia e estupidez. Eu sei como é se sentir estúpido assim.
    Vou compartilhar com meus amigos.
    Beijos

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    1. Francine S. C. Camargo28 de agosto de 2018 19:50

      Bruna, obrigada pelo carinho e por disseminar a ideia. Beijão.

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  • Polly - Entre Livros e Personagens20 de agosto de 2018 15:10

    "não era miopia, era só a minha estupidez"
    Uau, amei muito seu texto! É super bem escrito e a mensagem que ele passa nos deixa reflexivos, nos faz repensar. Foi impossível não me sentir tocada por seu texto ♥
    Beijos!

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    1. Francine S. C. Camargo28 de agosto de 2018 19:53

      Polly, que máximo! Que bom saber que esse tipo de reflexão é capaz de tocar as pessoas. Fico feliz. Grande beijo e obrigada.

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  • Oi!!

    Simplesmente admiro o seu trabalho e não vou me cansar de dizer isso em cada texto seu que eu tenho a oportunidade de ler! Acho incrivel a sua capacidade de nos fazer refletir sobre a nossa vida por meio de palavras simples

    beijos

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    1. Francine S. C. Camargo28 de agosto de 2018 19:54

      Epa, epa, epa!
      Tem noção de como esse comentário me fez feliz????
      Beijo no coração.

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