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QUERIDA ONTEM

Por Francine S. C. Camargo •
domingo, 29 de abril de 2018
"Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando."
(Vinícius de Moraes)
 Não sei ainda se sentia a sua falta ou se não poderia seguir adiante enquanto seus passos acompanhassem os meus, e é certo que fui perseguida todo o tempo. Chamava a você de ontem, minha forma original, meu corpo em cicatrizes, mostrando-me ao hoje que fui mais real do que supunha.

 E nessa hora, no silêncio intrigante em que me encontrava, a vida atual clamava por mim, mas a vida já vivida veio fremir a minha paz com os equívocos que adormeciam em algum quarto dentro de mim: os deslizes cometidos, as palavras não ditas, as ações tolhidas pelo zelo em excesso.
 O passado me implorava por reconciliação.

 Foi o tempo o responsável, o grande senhor desse encontro. Não veio trazendo cura, mas me chamou de canto e fiquei ali, contra  a parede, demolindo meus próprios freios, quando ele mencionou a seguinte proposta:

 Que tal fazer as pazes consigo mesma?

 Então, inevitavelmente, foi preciso exorcizar a ideia de não ter mais o ontem comigo, sobrepujar a noção de que não se deve nunca mais olhar para trás...

 O primeiro passo para a reconciliação foi entrar no quarto escuro munida de uma lanterna, e deixar que as sombras fossem iluminadas.

 Há determinadas cenas que emolduram nossa rota e tentar apagá-las é perder o rumo de hoje.  Tantas desilusões, desencantos, desenganos e tantas opiniões sem fundamento, entretanto, foi esse o caminho escolhido.

 O segundo passo foi despir-me. E nua, diante do meu próprio reflexo, deixei de lado os conceitos que outrora me traíram:

De que eu era uma farsa e a qualquer instante descobririam.
De que não havia nada para dizer.
De que tudo que era feito não passava de obrigação e mesmo o amor era burocrático.
E que o que escondia era tão precioso que, se soltasse de mim, importância não mais haveria.
E feridas se transformariam em pérolas, deixando de doer. E sem a dor, o que restaria?

 Pois, menina de ontem, o terceiro passo foi rir de tudo isso. E ali, crua e exposta, descascada de sentenças, foi primeiro necessário chorar todas as lágrimas novas que vieram, todas as lágrimas que chegaram atrasadas e também todas aquelas que já havia chorado um dia. E rechorei.

 E ficou leve, leve, leve até o espaço aumentar, até os sonhos povoarem o dia, até o ar se espalhar por todo o quarto e fazer cócegas.
 Para que eu pudesse rir.

 E o riso, de início adelgaçado, tornou-se vastidão, coroando toda a vizinhança que me envolvia. E não havia onde me apoiar, não havia cais, só havia eu hoje com eu ontem, velejando bem distante do porto que julgava ser seguro.
 E nos encaramos. E nos discernimos já com seriedade no rosto.

 Aquela de ontem esperou que eu me aproximasse e confessei, sem pudor, sem sequelas, sem saudosismo:

 - Eu te admito!

 Porque nada precisava ser apagado, nada precisaria ser esquecido. Nada de demérito, fatalismo ou arrependimento deveria existir.
 E a garota de ontem tomou-me as mãos e disse, em total concordância:

 - Eu te aprovo.

 Passado e presente se despediram em silêncio, agora com suas existências mutuamente autenticadas.
 E assim o ontem pôde virar poesia, deixando o hoje em esboço para tudo que nele ainda possa ser escrito.

E nele cabe o infinito.

Comentários via Facebook

36 comentários:

  1. É possível chorar com uma publicação? É sim.
    Primeiro post que leio no dia e já estou aqui arrepiada.
    Pela forma com que as palavras foram usadas, por ter me identificado, por tudo.

    Obrigada <3
    Precisava ler isso.

    Beijos
    www.saidaminhalente.com

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    1. Francine S. C. Camargo3 de maio de 2018 23:15

      Claicy, acho que é possível sim, ao menos eu sempre choro lendo, escrevendo e por aí vai...sabe o nome disso? Intensidade. Beijo e obrigada pelas palavras.

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  • Cabine de Leitura3 de maio de 2018 17:03

    Um texto tocante, que remete bem a dádiva que é o presente e quão prejudicial pode ser as dores passadas. Nada como estar de bem com nós mesmos, com amor próprio e ciente de que nos somos donos de nossa própria história. Parabéns.

    Abraços.
    https://cabinedeleitura0.blogspot.com.br/

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    1. Francine S. C. Camargo3 de maio de 2018 23:18

      É tão essencial fazer as pazes com quem fomos e somos, né? Sim, a história é só nossa e somos responsáveis por fazer com que ela valha todas as dores. Obrigada. Abração.

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  • Olá!

    Adorei o seu texto, cheio de sentimento e reflexões, com certeza todos que o lerem irão parar para pensar em seus atos e principalmente em seu presente!

    Bjss

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    1. Francine S. C. Camargo7 de maio de 2018 20:14

      Nay, obrigada pelo carinho, se escrever é uma forma de proporcionar reflexões e mudanças, posso te garantir que quero fazer isso para sempre! Beijão.

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  • Oi Fran, que texto lindo, é de tua autoria, né?!?!
    Me identifiquei muito com ele, apesar de metafórico, eu entendi que fala de desapego... Me desculpa se estiver errada, sou meio lenta para essas leituras mais profundas. Mas gostei muito.
    Bjos
    Vivi
    http://duaslivreiras.blogspot.com.br/

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    1. Francine S. C. Camargo8 de maio de 2018 20:32

      Viviane, acho que você pode ter plena liberdade em ler o texto exatamente da forma que o sentiu. Sim, escrevi num desses devaneios da vida. Hehehe. Beijão.

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  • Book Obsession8 de maio de 2018 16:27

    Olá!
    Que texto lindo!
    O que mais gosto quando leio alguns textos é o fato de ter intensidade e são muito envolventes. Sempre deixa uma sementinha para refletirmos sobre a vida.
    Parabéns!
    Beijos!

    Camila de Moraes

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    1. Francine S. C. Camargo8 de maio de 2018 20:32

      Camila, ah, essa sementinha faz tão bem para essa que aqui escreve...beijão grande e obrigada.

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  • AI MEU CORAÇÃO... CHOREI!!!
    Molier, tem que colocar um aviso que lágrimas rolarão ao ler um texto assim...
    Lindo, lindo, lindo.
    Beijos

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    1. Francine S. C. Camargo11 de maio de 2018 21:52

      Hahahaha, Ivi. Às vezes não tem como adivinhar como virão as emoções, né? De qualquer forma, algo me diz que essas lágrimas fizeram bem para a alma, por isso não vou me desculpar, não. Beijão.

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  • Aline M. Oliveira9 de maio de 2018 13:16

    Olá! Que profundo! este texto deveria ser lido todos os dias, pra que possamos perceber o quanto deixamos a nós próprios de lado, e como esse desprezo é prejudicial a nossa saúde como um todo. Parabéns por tamanha sensibilidade!


    Bjoxx ~ www.stalker-literaria.com

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    1. Francine S. C. Camargo11 de maio de 2018 21:54

      Obrigada, Aline. Acho que podemos sim pensar nisso todos os dias, em nós, em formas de nos absolvermos de nossos erros, aqueles pseudo-crimes que a gente impõe a nós mesmos e que não tem motivo nenhum. Beijão.

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  • Bru Costabeber12 de maio de 2018 22:28

    Olá Fran
    Que texto mais simples, delicado e encantador é esse? Eu fiquei perdidamente apaixonada com a forma como você fez esse encontro entre passado e presente e os ensinamentos que passam para nós.
    Beijos,
    https://www.umoceanodehistorias.com/

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    1. Francine S. C. Camargo14 de maio de 2018 20:10

      Olá, Bruna. Na minha opinião, a delicadeza é de quem lê o texto! Obrigada pelo carinho. Beijão.

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  • Jessica Christina13 de maio de 2018 20:15

    Oie, tudo bom?
    Que belo texto! Parabéns. Uma escrita linda, delicada e sincera. Adorei!!

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    1. Francine S. C. Camargo14 de maio de 2018 20:11

      Que bom que gostou, Jéssica. Fico imensamente feliz pelo seu comentário. Beijão.

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  • Oi,
    que texto lindo. Suas palavras soam como poesia e realidade e despertam inúmeras reflexões. Adorei ter lido este texto aqui hoje, acho super importante estarmos em paz com nosso passado para que possamos desfrutar do presente e construir um futuro melhor.

    Abraços!
    Nosso Mundo Literário

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    1. Francine S. C. Camargo14 de maio de 2018 20:11

      Uau, Delmara. Que lindo ler isso. Obrigada, obrigada, obrigada!

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  • Coisas da Bueno14 de maio de 2018 17:25

    primeiramente quero te parabenizar por um texto tao bem escrito rico em sentimentos descritos por palavras paz é oque o mundo precisa

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    1. Francine S. C. Camargo14 de maio de 2018 20:12

      Sim, precisamos de paz, começando por nós mesmos. Obrigada pelo carinho.

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  • Nathalia Silva15 de maio de 2018 12:43

    Fazer as pazes consigo é tão complicado, ainda mais quando o meio envolta faz você ser sentir pequeno, inútil, fraco.... O tempo pode ser o melhor remédio, pena que ele pode trazer a cura, mas não apaga as cicatrizes. Enfim, ótimo texto. Lindo e sensível.

    http://ventoliterario.blogspot.com

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    1. Francine S. C. Camargo15 de maio de 2018 14:41

      Nathalia, há tanto ao nosso redor que contribui para que a gente sinta culpa, inferioridade, fraqueza, como você citou. Mas quer saber? Tenha em mente quem você é e para onde quer ir...assim, a paz não vai depender de nada além de você mesma. Obrigada pelas palavras.

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